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Existe liberdade no capitalismo?

O que é liberdade? Para responder se existe liberdade no capitalismo, é necessária a reflexão sobre esse questionamento, um dos principais temas enfrentados pela filosofia política.


A resposta em melhor sintonia com os ideais capitalistas é aquela fornecida pelo liberalismo[1], com foco na liberdade individual: a liberdade é a possibilidade de cada indivíduo fazer o que deseja, sem ser impedido por restrições impostas pela sociedade – com a condição de que as ações individuais não sejam danosas ao convívio social.


Essa definição de liberdade contrapõe indivíduo e sociedade, partindo do pressuposto de que o primeiro existe separado da última – isto é, existiria uma essência humana individual anterior à inserção daquele indivíduo no contexto social. Assim, apenas um tipo de limitação à liberdade se torna evidente: a limitação a essa essência individual, restrição normalmente conduzida pelo Estado, utilizando como instrumento a lei. Sob tal aspecto, quanto maior for o poder e a atuação do Estado, menor será a liberdade. Desse modo, o capitalismo seria um modo de organização social que preza pela liberdade, sobretudo em comparação com as sociedades feudais anteriores ou com as ditaduras que, em nome do comunismo, tomaram a URSS, a China, Cuba e a Coreia do Norte a partir do Século XX.


Entretanto, a resposta liberal parte de um pressuposto difícil de ser sustentado: a existência de um indivíduo sem sociedade. Embora tal pressuposto seja a base sobre a qual se ergueu uma das ideologias mais difundidas no mundo atual, ele parece ser desmentido pela experiência real. Ao ser separado do ambiente social, em poucos dias ou meses, o ser humano definha, enlouquece. Em um exemplo notável, presos mantidos em condição de isolamento (a popular “solitária”) por períodos prolongados chegam a perder a noção de si, de quem são e até mesmo se são reais ou não – forte indicativo de que não há uma identidade individual sem o convívio social.[2]


Assim, parece necessário recorrer a outras definições de liberdade, que não contraponham o indivíduo e a sociedade de forma tão aguda (ou que, ao contrário, procurem aliar esses dois elementos). Nesse sentido se estabelece o conceito de Mikhail Bakunin[3], para quem a liberdade possui dois aspectos: o primeiro aspecto seria a capacidade do ser humano de desenvolver plenamente suas faculdades e poderes (em determinadas situações, essa capacidade é impulsionada pelo meio social). Já o segundo aspecto seria a revolta contra qualquer autoridade.


A definição de Bakunin possibilita a compreensão de um outro tipo de limitação à liberdade, quando a restrição não é imposta ao indivíduo em si, mas ao meio social onde ele vive. Alterando-se o meio, altera-se também a capacidade de desenvolvimento pleno das faculdades e poderes de cada um dos seres humanos nele presentes. Além disso, transforma-se a capacidade de resistência aos poderes externos.


O uso contínuo dessa técnica (a alteração do meio para produzir alterações no nível individual) recebeu do filósofo francês Michel Foucault o nome de governamentalidade. Trata-se de uma ‘mentalidade de governo’, onde o instrumento usado para impor a limitação não é somente a lei, mas também cada um dos mecanismos de gestão empregados para mudar o meio social.


Nas sociedades capitalistas, em geral, a governamentalidade é exercida através de mecanismos de gestão econômica (controlados pelo mercado, mais do que por qualquer autoridade estatal). Se o dólar aumenta, menos pessoas de classe média ou baixa terão a oportunidade de realizar o sonho de conhecer o parque da Disney. Se o desemprego aumenta, mais pessoas se sujeitarão a empregos que não querem, em condições desfavoráveis, para continuar recebendo o dinheiro suficiente para alimentar suas famílias e pagar as contas no fim do mês. Se a propaganda de determinado produto e outras formas de incentivo ao seu consumo são constantes e bem direcionadas, diversas pessoas passarão a desejá-lo e comprá-lo sem necessidade – algumas vezes sem saber o porquê.


Nos exemplos acima, não há uma proibição de viagens, uma obrigação de compra ou uma lei forçando determinada pessoa a exercer alguma profissão (pelo contrário, as normas internacionais e as Constituições dos países capitalistas costumam enaltecer, por exemplo, a liberdade de ir-e-vir e a liberdade de profissão). Há apenas a pressão exercida pelo meio. Porém, o efeito é bastante semelhante. Na prática, ao menos em certa medida, há a mesma consequência – a mudança involuntária de comportamento.


Em outras palavras, a capacidade de desenvolver plenamente as faculdades e poderes de cada ser humano não é exercida. Ao mesmo tempo, a resistência às influências externas diminui (poderes alheios e autoridades passam a controlar os hábitos de trabalho e consumo). Portanto, com o uso desses mecanismos de gestão econômica, a liberdade se apresenta de forma bastante limitada no capitalismo. É possível (embora não seja certo) que haja mais liberdade em comparação com determinados sistemas de organização socioeconômica adotados ao longo da história. Todavia, do mesmo modo, é possível escolher outras formas de organização nas quais o nível de liberdade seja muito maior.


Créditos da imagem: página 'Estátua da Liberdade' no portal 'Wikipédia'


[1] Em especial por Stuart Mill, ainda hoje considerado um dos principais nomes do liberalismo político. O tema é tratado pelo autor na obra “Sobre a liberdade” (“On liberty”, no título original em inglês). [2]A situação é retratada na série “Olhos que Condenam”, onde o personagem Korey Wise vive o drama do isolamento durante a maior parte de sua injusta detenção. Levando em conta os efeitos perversos da medida, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) considerou como tortura o confinamento solitário indefinido ou prolongado (conforme regra 43.1, ‘a’ e ‘b’, das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos). [3]Conforme o texto “Homem, Sociedade e Liberdade” (tradução livre do título em inglês, “Man, Society and Freedom”), parte da coleção “Bakunin sobre a Anarquia” (tradução livre do título em inglês, “Bakunin on Anarchy”).

 
 
 

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