Individualismo, comunitarismo e democracia
- Igor Ferreira
- Aug 16, 2020
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De um lado, o indivíduo. A palavra indica “aquele que não pode ser dividido”, sendo utilizada para designar cada ser humano como um todo coerente, racional e que reúne ideias não-contraditórias. A racionalidade e a coerência são dadas como pressupostos, sem muitos questionamentos sobre suas origens. A partir daí, a ação racional do indivíduo é associada à ideia de liberdade e autonomia – uma liberdade em oposição à limitação da ação individual pelos outros (sejam governos ou instituições políticas, sejam pessoas que pensam de maneira diferente).
De outro lado, a sociedade. Assim como o indivíduo, ela costuma ser considerada como um conjunto coeso de interesses. Entretanto, na visão do comunitarismo, que privilegia a igualdade e busca dar a todos as mesmas oportunidades, a vontade da sociedade é mais importante que a vontade do indivíduo. Trata-se de um ponto de vista mais altruísta, segundo o qual devemos pensar nos outros, ter empatia e aceitar limitações à nossa ação individual se elas nos ajudarem a alcançar o bem coletivo.
Essas duas perspectivas estão presentes em todo o pensamento da filosofia política moderna, normalmente colocadas em extremos opostos do espectro político. No entanto, ambas partem de um mesmo pressuposto: o indivíduo e a sociedade são contrários entre si, sendo necessário, para manter a integridade de um dos dois elementos, destruir a integridade do outro.
Em contraponto à filosofia política moderna, é possível encarar tanto o indivíduo quanto a sociedade de outra forma. Uma análise mais completa e aprofundada nos leva a perceber que cada um de nós é um ponto no meio de uma rede constituída por todo o Universo. Nossos pensamentos, desejos, vontades e ações não surgem do nada. Ao contrário, resultam da interação de nosso corpo com a sociedade em particular e o ambiente em geral (“acima” de um suposto nível individual) ou de variados processos biológicos, físicos e químicos que ocorrem em nossos órgãos (“abaixo” desse mesmo nível).
Por isso, longe de ser um todo racional e coerente, cada ser humano é uma série de contradições representadas por essas diferentes interações. Como elas são a própria origem do pensamento racional, é possível dizer que cada um de nós é um conjunto de racionalidades, inevitavelmente contraditórias em algumas oportunidades. Somos, em certa medida, divisíveis em várias linhas de pensamento e forças que nos levam a agir de uma forma ou de outra – a própria palavra “indivíduo”, portanto, talvez não seja a mais adequada para nos designar, podendo ser substituída por “ser humano”, “singularidade”, “entidade somática” ou qualquer outra que admita nossa divisibilidade em várias partes.
Da mesma maneira, a sociedade não é um todo íntegro formado pela simples soma das vontades individuais ou pelos desejos da maioria. Afinal, vontades múltiplas e contraditórias, originadas de experiências diferentes, não são capazes de se compor magicamente em uma vontade única e geral. Falar em uma “vontade geral”, “interesse público” ou “bem coletivo” é simplificar a realidade e dar passagem ao autoritarismo – ignorando a existência dos pensamentos e linhas de força que atuam em sentido contrário.
Tendo isso em mente, a atividade política não necessariamente passa por uma escolha entre o ser humano individual e a coletividade. Assumindo a pluralidade de ideias que compõem tanto o ser humano individualmente considerado quanto a comunidade, é possível pensar em uma organização política diferenciada, radicalmente democrática.
Em primeiro lugar, é preciso assumir plenamente esse emaranhado de ideias, pensamentos e linhas de força que constituem o Universo e adotar uma postura de valorização da diversidade. A partir de então, é possível pensar na política enquanto atuação estratégica conjunta. No meio desse caos, surgem de forma eventual e não-permanente algumas ideias, pensamentos e linhas de força compartilhados entre determinados seres humanos. É apenas levando em conta esses aspectos em comum, tomando-os como a única justificativa para a reunião dos seres humanos em comunidade (uma reunião também eventual e não-permanente, assegurando a liberdade de buscar outras comunidades quando cessarem tais aspectos em comum), que se torna concebível, de fato, uma democracia.
Assim, na busca por uma sociedade radicalmente democrática, é necessário superar a visão do indivíduo e da sociedade como entidades coesas e inconciliáveis. Em outras palavras, deve-se assumir (e levar às últimas consequências no plano político) o ponto de vista segundo o qual ambos são entidades plurais, cada uma contando com interesses diversos e contraditórios, mas muitas vezes compartilhados.

Imagem: O indivíduo Homer Simpson é perseguido por uma multidão furiosa formada pelo restante da sociedade de Springfield. Será que indivíduo e sociedade sempre se contrapõem ou é possível encontrar interesses compartilhados entre ambos? Imagem disponibilizada no Blog de Laura Elizabeth Liguori (http://lauraeliguori.blogspot.com/2012/01/ilustraciones-digitales.html)
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