O que o BBB pode nos ensinar sobre o neoliberalismo?
- Igor Ferreira
- May 2, 2021
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Por Igor Ferreira

Foto: Arthur e Juliette trocam farpas durante prova do líder no BBB 21. Discussão começou porque brother enxergava a sister como ameaça no jogo. Foto disponibilizada em reportagem no portal da Jovem Pan. (https://jovempan.com.br/entretenimento/tv-e-cinema/bronca-de-boninho-briga-de-juliette-e-arthur-eliminacao-acompanhe-a-prova-do-lider-do-bbb-21.html)
Seja uma versão cada vez mais aprimorada de você mesmo. Evolua, supere os erros de seu passado e se esforce para conquistar a simpatia das pessoas, derrotando todos os competidores que encontrar. Seja honesto e autêntico, pois sua principal arma é sua personalidade. Depois, quando enfim for considerado um campeão, desfrute de seu prêmio: dinheiro, fama, status e reconhecimento são alguns dos mimos oferecidos a quem alcançar a vitória.
O parágrafo anterior poderia perfeitamente ser usado como texto motivacional por um coach qualquer em uma palestra sobre empreendedorismo, mas também pode ser lido como uma breve descrição do que fazer para vencer o Big Brother Brasil. Na semana em que a 21ª edição do reality show chega ao fim, apesar do número considerável de haters, seu sucesso continua inegável – não apenas com relação aos índices de audiência do programa em si, mas também em termos de engajamento dos conteúdos relacionados ao BBB nas redes sociais.
Certamente, vários fatores contribuem para que o programa tenha alcançado um sucesso tão intenso e duradouro. Além de todo o dinheiro investido na produção e na divulgação, o reality conta com uma fórmula que consegue nos tocar em nossos pontos fracos (desde aquela vontade de espiar os outros em suas ações cotidianas até o desejo de conhecer e a capacidade de se identificar com as histórias e as escolhas dos personagens do jogo). Além disso, ao menos um pouco do sucesso pode ser atribuído ao fato de que a fórmula do jogo reflete, embora intensificando alguns aspectos, a disputa diária que vivemos em nossas vidas – em meio ao contexto do capitalismo e, mais especificamente, do neoliberalismo, ideologia dominante no mundo atual.
Para entender melhor essa semelhança, primeiramente é necessário explicar o que se quer dizer com a palavra ‘neoliberalismo’. No senso comum, o termo é utilizado para designar uma nova doutrina econômica, surgida a partir da ressignificação do liberalismo clássico. No entanto, o neoliberalismo é mais do que isso: não apenas uma doutrina econômica, ele é uma corrente ideológica que busca expandir os ideais econômicos do liberalismo – ressignificados, como é natural em virtude dos 2 séculos e meio que separam ambas as correntes – para todas as áreas de nossas vidas. Mas o que isso significa?
Isso significa, em primeiro lugar, que qualquer área de nossas vidas passa a ser regulada pelos imperativos da eficiência e da produtividade. É preciso criar mais valor a cada segundo. Tudo o que fazemos é pensado com base nessa necessidade de aumentar o valor, incluindo o trabalho, o lazer, as relações interpessoais e, como não poderia ser diferente, o desenvolvimento da própria personalidade. Passamos a pensar em nós mesmos como mero capital humano, sempre precisando aumentar nosso próprio valor. Qualquer atividade a ser realizada só faz sentido se contribuir, de alguma forma, para nosso aprimoramento. É nesse sentido que se pode dizer, como afirmam os filósofos Pierre Dardot e Christian Laval[1], que o neoliberalismo transforma cada um de nós em um empreendedor de si mesmo.
Vivendo em um mundo neoliberal, precisamos – assim como os brothers e sisters – aprimorar constantemente os aspectos de nossa personalidade para nos tornar ricos, famosos e desejados (ou até mesmo para sermos bem aceitos por nossos familiares e amigos). O problema é que as expectativas criadas por essa ideologia são irreais. Como seres humanos, não conseguimos atender em todas as ocasiões à pressão pelo aprimoramento que marca cada momento de nossas vidas (seja na forma de pressão social ou de pensamento internalizado) – assim como marca cada momento da participação dos brothers e sisters, vigiados 24 horas por dia por todo o Brasil. O resultado dessa nossa incapacidade de sermos sempre mais do que somos é o sentimento de insuficiência, que pode se manifestar na forma da ansiedade ou da depressão.
Em segundo lugar, a definição de neoliberalismo como a expansão do liberalismo para cada área de nossas vidas significa que todo momento passa a ser interpretado de forma individualista. Em um contexto de livre concorrência, o outro passa a não ser nada mais que uma ameaça ao nosso sucesso. Só um brother ou sister leva o prêmio de um milhão e meio de reais. Da mesma forma, só alguns de nós conquistamos o público por meio de nossas habilidades e traços de personalidade. Para cada campeão, é necessário o surgimento de um exército de fracassados.
Em ambos os casos (tanto no BBB, quanto no mundo neoliberal no qual vivemos), trata-se de uma competição de desenvolvimento de capital humano. Se o outro é o competidor, ele deixa de ser alguém com quem podemos construir relações genuínas, autenticamente humanas – no máximo, ele pode ser um aliado pontual, útil em meio aos esforços de construção de nossa personalidade. O resultado é a solidão.
Entretanto, nesse último ponto, o BBB demonstra que algo em nossas vidas sempre escapa ao neoliberalismo. Em todas as edições, há a formação de amizades ou romances que persistem apesar do jogo e, em alguns casos, até mesmo após o fim do confinamento. O estabelecimento dessas conexões genuínas demonstra uma recusa a tratar o outro como mero competidor. Consequentemente, tais relações autênticas representam a recusa da ideologia neoliberal no contexto de um jogo no qual suas ideias se manifestam de maneira ainda mais intensa – lançando luz sobre a possibilidade de construirmos nossas vidas e nossas relações fora dos moldes determinados pelo neoliberalismo.
[1] Foi utilizado como referência o livro “A Nova Razão do Mundo”, no qual os dois autores conduzem reflexões bastante aprofundadas sobre o neoliberalismo.
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